Este blog contém alguns poemas publicados na Agenda da Semana do site Cultura Pará.
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21 de fev. de 2010

Últimas Palavras de um Barco

Eu sou minha margem proibida. Nasci de um amor gapuia e minhas mãos líquidas me turvam a vista. Eu mesmo me adoeço. Meu ânimo se esvai, seca. Vivo verde-escuro, segredo água nessa face limo de minha proa. Marcas de toda pré-amar sangrada. Eu me venço nesses glóbulos de lodo silenciados. Faço-me vazante e me revelo junco.

Sempre fui porto nessas águas. Agora, aqui de barro e sangue, parto o que me é verdade e nunca quis. Algo de mim se entrega, mas reconheço que devo resistir. Reconhecer, verbo que exige distância. Olho pra mim fora do meu corpo, suspenso no espaço indivisível, a lâmina desse rio estrada. Meu madeiro está vazio. Alguém espera.

Não existo em mim agora, desengano-me nesse abraço, o sereno corpo de uma verdade exposta. Silhueta-me no meio de tantos outros eus que asfixiei em mim. Todos me calam e leio a palavra ágrafa. lnsinceridade.

O trapiche existe pra que eu queira voltar. Benigna água.

A tarde desvenda a lançante, como é úmido esse ar fêmeo. Vozes se encerram nas velas, falam dos corpos que vêm dar na praia. De várias marés se faz minha partida, ímpar, agora, essa corda que me desata. Água, uma possibilidade confidente. O norte é a cidade acima. À beira, o sal que me escorre do ventre. Recolho minha âncora incrustada de corais.

Ser o rio, a história das águas. Taumaturga vontade.

A foz, a crença em outra carne. Lanço-me água-viva.

O que me move está submerso e meu porão alaga um desespero quando se acusa cansado. Escrevo-me na letra desse rio, desosso-me e abro minhas veias barrentas. As águas se fazem força, me arrastam e se dizem caminho. Não. O sentido do rio também é dito no tempo das minhas mãos. Meu nome está inscrito nessa palavra água que busco. Palavra oculta que deságua meu nome em outras terras.

Eu, o corpo presente. Minha pele, a água desnuda.

O caminho nascido sobre as montanhas. De uma rocha congelada o veio da vida. A nascente. A vida que existe pra ser sofrida. Esse último instante que se faz todo saudades. Todos sabem, as águas cobrem as pedras. No cais do porto tu me dás adeus.


Daniel da Rocha Leite,
do livro “Águas Imaginárias”

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